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Diabo Vermelho (ou: o propósito desse blog).

“Eu sou ela, que é a mãe natural de todas as coisas, amante e governadora de todos os elementos, progênie inicial dos mundos, chefe dos poderes divinos, rainha de todos que habitam os infernos, diretora daqueles que vivem no céu, manifestação solitária e sob uma única forma de todos os deuses e deusas. Segundo minha vontade, estão dispostos os planetas do céu, os salutares ventos marítimos e os lamentáveis silêncios do inferno; meu nome, minha divindade é adorada por todo o mundo, de diversas maneiras, em costumes variados e sob muitos nomes.”

Lúcio Apuleio (125 E.C. – 170 E.C.)

A figura da mulher sempre esteve atrelada ao desconhecido, ao poder da criação e da morte. No período das sociedades ágrafas, a mulher era tida como divina devido a sua capacidade de dar à luz, bem como sangrar todos os meses e não morrer. Seu período menstrual, cheio de poder, morte e intuição, foi considerado sagrado, ponte para o oculto. Tal sabedoria sobreviveu pelos séculos, estando presente nos mitos das civilizações da antiguidade. As Deusas antigas foram (e ainda são) referências divinas da sabedora mística do feminino, encarnada no microcosmo dos ciclos e poderes individuais da mulher, de criação e morte, subida aos céus e descida aos infernos.

Os séculos se passaram e a civilização ocidental experimentou o triunfo do monoteísmo, centrado na figura patriarcal do Deus -macho- onipotente, que a tudo governa com sua lei implacável. A força física e a racionalidade triunfaram junto com Ele, e o mundo numinoso, úmido, subterrâneo e oculto das mulheres tornou-se perigoso, proibido e distante. O que antes era cotidiano e natural, passou a ser sujo; o que era divino, tornou-se diabólico; e o que era belo passou a libidinoso.

A sexualidade feminina, antes celebrada e vívida, foi trancada numa jaula até que essa murchasse. As mulheres foram tornadas virgens e castas, reprimidas e santas. Mas não tardou até que tanto ódio e medo do feminino virasse uma grande histeria coletiva, compilados no Malleus Maleficarum como decreto oficial do mal das mulheres: servas do Diabo, oficias do inferno para corromper a moral cristã e desestabilizar os homens e a sociedade. Qualquer mulher poderia ser uma bruxa, desde as sábias curandeiras até as adolescentes curiosas, as mães de família e as solteiras, as que sabiam demais e as que nada sabiam. Queimadas, torturadas e despedaçadas, essas mulheres sentiram na dor da carne o que significava a justiça divina.

A historiadora Michelle Perrot aponta em seu livro Minha História da Mulheres como as feiticeiras ganharam a posição de bode expiatório da modernidade:

“Em primeiro lugar, elas ofendem a razão e a medicina moderna, por suas práticas mágicas. Têm a pretensão de curar os corpos, não somente com ervas, mas com elixires elaborados por elas e com fórmulas esotéricas. Elas manifestam uma sexualidade desenfreada: têm a “vagina insaciável”, segundo Le Marteu des soccières. Praticam uma sexualidade subversiva. Subversão das idades: muitas feiticeiras velhas fazem sexo numa idade em que não se faz mais, após a menopausa. Subversão de gestos: fazem sexo por trás, ou cavalgam os homens, invertendo a posição que a Igreja considera a única possível: a mulher deitada, o homem sobre ela. Colocam-se do lado de Lilith, a primeira mulher de Adão, que o deixou porque este se recusava a deixar-se montar. Na condenação das feiticeiras, a dimensão erótica é essencial. Elas encarnam a desordem dos sentidos, a “parte maldita” numa sociedade que ordena os corpos. Enfim, elas têm contato com o diabo. O diabo cuja existência foi estabelecida e cuja teologia foi desenvolvida pelo Concílio de Latrão. A feiticeira é filha e irmã do diabo. Ela é o diabo, seu olhar mata: ela tem mau-olhado. Tem pretensão ao saber. Desafia todos os poderes: o dos sacerdotes, dos soberanos, dos homens, da razão.”

Veio o Renascimento, a modernidade, e a figura da bruxa diabólica perpetuou-se. No íntimo da sociedade europeia, as famílias de antigas tradições mágicas e folclóricas (cunning folk) mantiveram-se nas sombras, praticando sua Arte de modo hereditário e oculto, sobrevivendo enquanto misturavam-se com os cristãos em suas missas e reuniões, comendo da hóstia nas comunhões, rezando aos santos, a Jesus e a Maria.

As sociedades ditas secretas, como a Maçonaria e Rosa Cruz ganharam espaço e adeptos, abrindo caminho para novas ordens que buscavam reviver os antigos conhecimentos místicos e práticas mágicas da humanidade. Essas práticas foram racionalizadas e elitizadas, separadas em alta e baixa magia, restringindo antigos conhecimentos a pessoas privilegiadas. Veio a Golden Dawn, ou Ordem Hermética da Aurora Dourada, reivindicando ser a verdadeira herdeira do rosacrucianismo, criada e chefiada por homens intelectuais, entre eles, médicos e maçons.

Outras sociedades e cuveens surgiram, e ‘muitos’ deles (para não generalizar ou ter de apontar nomes) tem algo em comum: a figura da divindade feminina convivendo com discursos e atos machistas e misóginos. Como a proposta deste texto não é polemizar ou levantar discussões acerca de atitudes contraditórias de antigos ocultistas, deixo ao leitor a curiosidade para buscar essas informações.

Novamente, a racionalidade e força física masculina foram usadas em detrimento ao feminino, e o discurso hipócrita de divindade e poder feminino circulava entre renomados ocultistas. A misoginia se manifestava nesses meios em atos de objetificação do corpo da mulher, violência, hostilidade, manipulação e domínio. Ficou o legado de valor filosófico e teórico, mas também as violências.

As bruxas, entretanto, sobreviveram. Aquelas mulheres ditas ignorantes, que praticavam a “baixa magia”, amigas do diabo, maléficas, sedutoras e sombrias. As wise woman, curandeiras (e benzedeiras), erveiras, feiticeiras e parteiras continuaram caminhando sobre a Terra e mantendo a prática da sua Arte, resistiram a perseguições, torturas, fogueiras, violências psicológicas e desprezo. Essas mulheres e sua sabedoria foram (e são) objeto de estudo de historiadores e antropólogos, e diante de tantas revoluções, puderam ao menos tirar seu ofício das sombras, mesmo que em doses pequenas.

A indústria cultural e a mídia em parte ajudaram a tirar a bruxa das sombras: a popularização da bruxaria, seja fantasiosa ou não, vem acontecendo há algumas décadas. Filmes, ficções, livros, desenhos animados, em toda a parte a figura da bruxa permanece no imaginário da sociedade ocidental. De certa forma, mitificando a imagem da bruxa, tornando-a uma mulher com problemas mentais, feia e asquerosa, com seus gatos pretos, chapéu pontudo, abóboras sorridentes e verruga no nariz.

Por outro lado, vemos a retomada das práticas antigas de sacralização do corpo feminino, celebrando e compreendendo a menstruação e os ciclos da mulher, promovendo curas e reconexões. Tudo isso é muito maravilhoso e digno de ser vivido por todas as mulheres, mas ainda há coisas pouco exploradas pelas próprias mulheres, ao menos as mulheres descendentes de Lilith.

O poder da energia sexual, de criação, energização e manipulação mágica, a menstruação sagrada como fluído mágico, o lado obscuro e oculto da mulher que lhe confere poderes de destruição temidos desde a antiguidade. Centrada em sua própria órbita de mulher estrela, a mulher tem consigo a possibilidade de realizar a obra da mulher-escarlate, experimentando a existência pela sua própria Vontade. O ofício da Arte sem nome requer, além da habilidade, conhecimentos e imaginação, uma vontade forte com firmes raízes, coisa que a sociedade há muito retirou das mulheres, destruindo sua autoestima e aniquilando seu poder pessoal.

Esse blog pretende explorar essas facetas de poder da mulher, as histórias, mitos e práticas da Arte que possibilitam o desenvolver do autodomínio feminino, ao conhecimento do corpo como templo e veículo, e a realização da Vontade pessoal e consequente empoderamento. De mulheres para mulheres. Se você é mulher, seja muito bem-vinda. Se você não é mulher, sinta-se à vontade para explorar o mundo feminino, e que isso sirva de forma a desenvolver a alteridade, o respeito e a compaixão ao feminino em seu coração. Que sirva de bússola no descobrimento e desenvolvimento do seu Yin, do Ânima existente em você.

"Eu sou a honrada e a desprezada. Eu sou a prostituta e a santa. Eu sou a esposa e a virgem. Eu sou o silêncio que é incompreensível e a idéia cuja lembrança é freqüente. Eu sou força e medo. Eu sou guerra e paz. Eu sou aquela que foi odiada em toda parte e que foi em toda parte amada. Eu sou aquela a quem chamam de Vida e vós me chamaste Morte. Eu sou aquela a quem chamam de Lei e vós me chamastes Sem Lei." Trecho de “O Trovão, Mente Perfeita”.

G.H.

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